Delirium
Julho / 2016
“O ‘delirium’ é uma síndrome neurocomportamental, causada pelo comprometimento transitório da atividade cerebral, obrigatoriamente em função de distúrbios sistêmicos. O prejuízo cognitivo decorre da quebra da homeostase (equilíbrio/bom funcionamento) do cérebro e da desorganização da atividade neural.” – Z.J. LIPOWSKI
–Bom dia, amor. –Disse Liliane com ternura para Alberto beijando-lhe nos finos lábios, cumprindo fielmente com o costume arraigado há tantos anos no relacionamento.
O que antes era uma gentileza, uma demonstração de carinho, com o tempo se tornou rotina. Não que essa fosse uma rotina exaustiva, tal qual se cumpre como a realização de trabalho fatídica para a mera subsistência, ainda que Liliane considerasse o ato como vital, ela o fazia com a mesma alegria e intensidade do primeiro dia. E, Alberto? A mesma descrição não poderia lhe ser atribuída, para a tristeza e consumo de Liliane. Alberto há muito tempo acordava antes dela. Todos os dias ele a esperava acordar com um sorriso tão vazio quanto seu olhar.
Ela sabia que algo não estava certo, mas depois de perder a conta de quantas vezes havia lhe perguntado qual era o problema, ela desistiu. O silêncio constante do esposo a fez pensar que talvez fosse sua culpa, talvez estivesse velha demais, o corpo já estava tão cansado que a fazia dormir mais, talvez isso o irritasse tanto a ponto de hoje ele não demonstrar qualquer sentimento…
Mas, essas eram preocupações do passado. Liliane aprendeu a conviver com o jeito do esposo, assim como aprendeu a superar todas as dificuldades da sua vida. E, se orgulhava disso.
Seguindo a rotina, ela se levantou, arrumou a cama e preparou o café. Assim como todos os dias, ele não conversava, e sempre que ela queria lhe contar algo era como se ficasse num longo monólogo. Não que isso a incomodasse, também. Ela dizia para si mesma que o sorriso no rosto do esposo era a prova de que ele estava ouvindo, que compreendia e que, o mais importante: lhe amava.
Com Alberto ao seu lado era constante ela perder a noção de quanto tempo havia ficado falando. Era fácil perder-se nos dias, afinal, com Alberto o tempo era irrelevante. Tanto é que foi só quando foi guardar a manteiga na geladeira que olhou o calendário e percebeu que hoje era seu aniversário. “80 anos! Mas, já”? O pensamento não era bom. Ficar mais velha só lhe trouxe alegria até os 18 anos, depois disso, ano após ano ela passou a amargurar cada vez mais a data. Desejava esquecê-la, e num ímpeto de raiva arrancou o calendário da geladeira e o enfiou com força no lixo. Era tudo muito mais fácil quando não tinha a noção do tempo.
O esposo enquanto isso apensa a fitava da mesa da cozinha, a mesma expressão estática. Ela se virou um pouco envergonhada, mas o que poderia fazer? Ela odiava a passagem do tempo, o tic tac dos segundos do relógio a incomodavam absurdamente. Tanto é que possuía apenas um único relógio, o qual deixava guardado na gaveta e só o retirava para conferir o horário da novela. Era a única serventia que um relógio poderia ter, ao seu ver.
Contar o tempo só atrapalhava tudo. O tempo era um inconveniente. Tão inconveniente quanto a vizinha do lado que outro dia lhe perguntou quanto tempo fazia que ela não via os seus filhos “é que creio que já faz muito tempo que eu não os vejo aqui”, ela tentou justificar com a voz trêmula diante da expressão no olhar de Liliane. Liliane não respondeu, preferiu dar-lhe as costas, voltar para o seu apartamento e compartilhar o absurdo com o esposo. Ela lá se lembraria de quanto fazia desde que havia visto os filhos?
Ora, o máximo que conseguia se lembrar era de vagas discussões, seus filhos gritando, chorando, chacoalhando seus ombros e dizendo algo sobre como Alberto não estava ali. “Mas, ele estava, ele apenas não gosta muito de falar, mas eu sei o que ele pensa em mim, sei que se importa e me responde mesmo sem palavras”, era o que ela dizia para os filhos. Era o que dizia para si mesma.
Eles lhe respondiam aos berros, suplicando-a para pensar, para mensurar quanto tempo fazia que ele não falava com ela. Deram-lhe até mesmo uma série de documentos, recortes de jornais antigos, fitas e CDS. Mas, ela nunca nem sequer abriu qualquer deles. Hoje, eles estavam aonde ela os havia deixado desde a primeira vez que os filhos haviam trazido para o seu apartamento: numa caixa de papelão atrás da porta da lavanderia.
Deram-lhe também relógios digitais, calendários e celulares. Diziam que ela gagueja, que ela não sabia aonde estava e que a tecnologia a ajudaria. “Mas eu sei”, pensava ela “Se acham tão superiores com a sua tecnologia…” pensava em silêncio enquanto jogava fora todos os presentes que lhe davam relacionado ao tempo. Ela tinha Alberto, ele estava ali, não precisava de mais nada! Por que eles não conseguiam entender? Ela havia se acostumado com o silêncio dele, não precisava notar tempo para “ser”, afinal estava satisfeita com o “estar” desde que estivesse com Alberto.
Por que seus filhos não conseguiam entender: eles tinham dificuldades, mas ela havia superado. E, se orgulhava disso.
Por fim, o cansaço venceu, os filhos pararam de visitar, de telefonar e ela logo também parou de se importar. Tudo não passava mais uma dificuldade que ela havia superado.
Afastando os pensamentos de sua cabeça, Liliane pegou o relógio da gaveta, já estava no horário do programa que gostava. Sentou-se no sofá ávida pela expectativa de deixar de lado de uma vez os pensamentos inoportunos daquela manhã. No entanto, qual foi a sua surpresa ao saber que o programa estava atrasado! Ainda estava passando o noticiário, que só não era tão inoportuno quanto os seus pensamentos naquela manhã porque tratavam sobre os problemas de gente desconhecida, portanto, irrelevante.
Ela pegou o relógio e o conferiu, estava no horário certo. Alberto ao seu lado apenas sorria. Ao notar, Liliane riu, deveria ser apenas um atraso da emissora, não tinha porque ficar brava com aquilo. Sem alternativa, ela esperou o noticiário acabar e começou a ver o programa que gostava. Pegou o relógio ao lado, mas este insistia em marcar o horário correto do programa! Sem qualquer atraso!
Era muita irritação para um dia só. O relógio estava quebrado, agora teria que levar o relógio para consertar e ainda arriscar passar por alguém que quisesse conversar ou lhe fazer perguntas como a vizinha lhe havia feito outro dia. Tudo que ela podia fazer era torcer para não encontrar ninguém.
Porém, por mais que o dia estivesse horrível, ela viu que Alberto a acompanhava até a porta, significava que ele iria com ela a relojoaria! Ela sempre entendia o que ele faria, ele não precisava dizer nada. Era isso que os filhos não compreendiam, diziam que ele não estava a acompanhando para os lugares que ela pensava, que ele estava em outro lugar. Mas, ele estava ali ao seu lado! Ela sabia disso, porque eles não conseguiam entender?
Mais uma vez ela afastou os pensamentos negativos. Ela havia superado. E se orgulhava.
–Demorará meia hora, senhora. –Informou o vendedor. –Esse é bem simples, pode esperar sentada ali, se desejar. –Disse indicando uma poltrona para que ela se sentasse. Liliane nada disse sobre a irrelevância de se dizer o tempo que ela ficaria ali esperando, bem como fez o possível para respirar fundo e fingir que não havia ficado irritada com o comentário do vendedor.
–Bom dia, Lucas! –Disse uma mulher de cerca de 40 anos apoiando-se contra o balcão. –Trouxe mais alguns para colocar a bateria. –Disse ela pegando um saco grande da bolsa e colocando sobre o balcão.
–Senhora Amanda, mas quanto tempo! –Disse o vendedor atrás do balcão.
–Sim, muito tempo, realmente, muito tempo! –Disse ela com um sorriso fraco. –Estive fora do negócio há uns meses…. Tempos difíceis! –Disse ela justificando-se, passando as mãos no cabelo que caiam sobre seus olhos. –Mas, me diga, como está seu pai, eu o vi outro dia mesmo no mercado.
–Meu pai? –Perguntou o vendedor atônito, erguendo as sobrancelhas. -Senhora, meu pai já faleceu há dois meses!
–Ora, mas que estranho… Eu podia jurar tê-lo visto…
–Acho que a senhora anda vendo fantasmas… –Disse com um sorriso brincalhão.
–Me perdoe, digo, meus pêsames…. Eu não quis–
–Não se preocupe! –Disse o rapaz vendo como a moça ficara encabulada. –Não tem problema! São coisas da mente, as vezes nossas mentes nos pregam algumas peças, é normal.
–Sim, você está certo… O cansaço desses tempos corridos deve ter me feito ver fantasmas.
–Quando o corpo e a mente estão cansados é natural criarmos situações que não existem… –Disse o vendedor refletindo. –Quando ele se foi, eu fiquei tão cansado de pensar nele, tão cansado por toda a dor que eu sentia, que cheguei a vê-lo alguns dias também…
– Entendo… –A mulher falou com um olhar distante, presa na reflexão das causas de seu cansaço. –De toda forma, peço desculpas de novo, Lucas. –Disse, quebrando o silêncio após algum tempo. –Volto para buscar no final da tarde de amanhã, tudo bem?
–Claro, senhorita. –Agradeceu o vendedor recolhendo o saco e colocando embaixo do balcão.
Enquanto isso, Liliane apenas ouvia a conversa, quieta e absorta em seus pensamentos. Refletindo sobre como seria curioso ver um fantasma. Se considerasse que o espírito da pessoa tinha a mesma aparência de quando esta havia falecido, tal como nos filmes, seria como se a sua jornada fosse parada, como se fosse eternizada num único momento, já que seu rosto não mudava.
Ela olhou para o lado, Alberto ainda estava ali sorrindo-lhe, mas dessa vez ela mal conseguia ver seus olhos vazios, ele estava quase todo encoberto por um tipo de névoa. Ela esfregou olhos, sentiu-se zonza e apoiou a cabeça nas mãos. Passou as mãos pelo rosto, os batimento ps cardíacos acelerados a faziam suar frio, o que só contribuía negativamente para a sensação de enjoo que sentia.
E se não só o seu rosto, mas toda sua história ficasse congelada, como uma estátua? Conversaríamos com esses fantasmas presos no tempo e nada mudaria? Seriam os mesmos assuntos, as mesmas expressões, até mesmo as mesmas dificuldades? Qual seria o sentido em ficar vendo ilusões em supermercados?
Ela não precisava das respostas pra essas perguntas, sabia que ilusões paradisíacas, levavam as pessoas ao mesmo estado como o da cliente que tinha acabado de entrar na loja: estado de confusão mental que fazia as pessoas perderem a noção do espaço e do tempo tava desorientada.
Ela tinha dificuldades, mas não as havia superado, não estava orgulhosa. Ela havia criado uma história em sua mente e acreditou muito tempo nela. Quantas coisas deixou de fazer? Quantos lugares deixou de visitar? Afastou-se de seus amigos, de sua família por uma ilusão. Ela não conseguia viver sua própria história e por isso criou outra, escolheu a confusão, escolheu não só ver fantasmas, mas também escolheu ser um, vivendo às margens de si mesma.
De súbito o tamborilar descompensado de seu coração parou de incomoda-la, transformou-se em adrenalina, em um tipo de vontade de viver que ela não conhecia há muito tempo.
Saiu tão rápido e tão contente que não ouviu o vendedor gritar atrás de si, dizendo que seu relógio estava pronto. Tampouco o ouviu gritando:
–Ei, senhora! Você esqueceu uma foto aqui!