Asfixia

Fevereiro/ 2017

-Ela era nova, não era?

-Era, não devia ter mais do que 30 anos.

-Ela trabalhava no mesmo setor que você?

-Sim, no mesmo. Era boa profissional, sempre fazia tudo certo, ficava a mais do horário, até fazia o trabalho dos outros sem reclamar!

O enterro havia sido no dia anterior, a tarde. Havia sido um dia daqueles que não se sabia ao certo qual era a temperatura, o típico dia que se tornava objeto de conversas fatídicas de elevadores ou de filas de bancos por pessoas que, numa ânsia de livrarem-se do terrível silêncio compartilhado com desconhecidos, diriam, suspirando aliviados e liberando a pressão que os dedos exerciam contra seus celulares ou qualquer outro objeto que tivessem nas mãos: “tempo louco, não? Hora faz sol, hora faz frio… Acredita que nesse exato momento não sei se coloco ou não um casaco?”.

-Quer dizer que ela fazia o trabalho dos outros? E não reclamava por que? -Perguntou a outra amiga curiosa.

-Sim, fazia tudo. O pessoal se aproveitava… Eu via que ela não gostava, mas fingia não se importar, nunca a vi falando “não”. Digo, não éramos amigas, éramos meramente colegas, não sei como ela era na vida pessoal, mas na empresa… -Disse pensativa, e após alguns milésimos de segundos continuou: -É, não… Nunca a vi falando “não” ou dando qualquer opinião… Eu sabia que ela não concordava com muitos assuntos, até mesmo nas rodas de conversa informais, mas ela nunca dizia a sua opinião… Tenho a impressão de que ela fingia ser imparcial o tempo todo.

Ela disse essas palavras pensando que na vida pessoal, fora da empresa ela não deveria ser assim, ela deveria manifestar sua opinião, ninguém consegue viver sem isso, consegue?

Mal sabia ela, porém, que a sua colega não apenas fingia na empresa, mas em todos os outros âmbitos também. Sua família era complicada, ela começou a trabalhar cedo para ajudar os pais a pagar as contas, mas não porque a renda que eles recebiam do trabalho não era suficiente, mas sim porque eles não exerciam qualquer trabalho. O pai passava o dia dormindo, levantava somente no final da tarde, saía de casa quando o sol estava se pondo é só voltava quando o sol estava nascendo. Não era necessário sentir o cheiro forte de álcool ou ouvir o barulho de enfeites caindo e espatifando no chão para saber aonde ele estivera.

Já a mãe por sua vez, passava o dia deitada no sofá, dizia que tinha que cuidar da filha mais nova. A desculpa fez sentido até a criança começar ir para escola, depois disso, como ninguém nunca a contestou, ela permaneceu com a mesma desculpa, talvez, quem sabe, se parasse para pensar por um segundo nas palavras que saíam de sua boca, percebesse o quão ridícula era dizer que tinha que cuidar de uma criança que não estava em casa. Mas, pensar exigia demais. Cansava demais.

Ela nunca contestou os pais. Talvez fosse culpa da educação dura que recebeu de sua avó, “nunca pergunte nada aos adultos, isso seria um desrespeito!“, “Nunca brigue! Nós, adultos, sempre queremos o melhor para os mais novos“. Cresceu enclausurada por imperativos e nunca conseguiu sair dessa condição.

Depois de um tempo se casou, não por amor, mas porque alguém a tinha tido que aquilo era o certo a se fazer, afinal, mulheres não podem ficar solteiras por muito tempo, é feio. Mulheres devem ter um emprego bom (mas não tão bons quanto o de seus maridos), serem magras, sorridentes e casadas (tudo antes dos 35).

Ela não contestou, se diziam que aquilo era o certo, era aquilo que fazia. Os imperativos históricos venciam ânsia das palavras.

Ela sabia que não amava o homem que estava ao seu lado, sabia que não queria compartilhar uma vida com ele. Talvez, se tivesse falado “não” para o pedido, se tivesse argumentado com as pessoas que diziam que casar era o certo, tudo teria sido diferente. Mas, argumentar dava muito trabalho. Cansava demais.

Era assim sempre, ela pensava, tinha opinião sobre os mais variados assuntos, tanto de sua vida pessoal quanto dos acontecimentos cotidianos, mas nunca dizia nada. Aqueles imperativos da avó aos poucos tornaram-se mais do que prisões, tornaram-se uma sombra que a seguiu a vida toda, abafando-a, apertando sua garganta com tanta força que um dia sufocou-se com as palavras que nunca disse.

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